Ted Grant

Democracia ou Bonapartismo na Europa - Resposta a Pierre Frank


Fecha: Agosto de 1946


O aforismo de Lênin de que vivemos numa época de guerras e revoluções – ao qual Trotsky acrescentou “e de contra-revoluções” – foi amplamente demonstrado pela história das três últimas décadas. Poucos períodos na história estiveram recheados com convulsões e enfrentamentos tão terríveis entre as nações e as classes e com mudanças tão bruscas de regimes políticos, por cujo intermédio o capital financeiro mantém sua dominação sobre os povos. Assim, torna-se duplamente importante para todos que seguem a doutrina científica do Marxismo e que pretendem fazer uma análise teórica dos acontecimentos, fazerem um exame escrupuloso e cuidadoso das mudanças que estão ocorrendo, se querem orientar-se corretamente na vanguarda e proporcionar uma direção às massas.

Ao criticar as concepções estéreis do estalinismo, que identificava todos os regimes ao fascismo na época do “terceiro período”, Trotsky brilhantemente caracterizou a essência da época como de mudanças e flutuações, em que as generalizações não seriam suficientes. Cada etapa deve ser examinada concretamente pela vanguarda, que, desta forma, poderá entender e interpretar os acontecimentos  e tirar as corretas conclusões práticas para sua atividade. Ele escreveu:

“A imensa importância de uma orientação teórica correta manifesta-se de forma mais visível num período de agudo conflito social, de rápidos deslocamentos políticos, de mudanças abruptas na situação. Em tais períodos, as concepções e generalizações políticas são rapidamente superadas e exigem ou completa substituição (o que é mais fácil) ou sua concretização, precisão e retificação parcial (o que é mais difícil). É justamente em tais períodos que aparecem necessariamente todo tipo de situações e combinações transicionais intermediárias que superam os padrões habituais e exigem uma atenção teórica contínua e redobrada. Em poucas palavras: se no pacífico e ‘orgânico’ período (antes da guerra) ainda se podia viver ao custo de algumas abstrações pré-concebidas, em nossa época cada novo acontecimento forçosamente torna patente a mais importante lei da dialética: a verdade é sempre concreta” (Bonapartism and Fascism, julho de 1934).

Entre os quadros da IV Internacional, existem camaradas que não compreenderam suficientemente esta lição. Continuam vivendo “ao custo de algumas abstrações pré-concebidas”, em vez de concretizar ou retificar parcialmente generalizações anteriores. Um evidente exemplo disto é o artigo de Pierre Frank.

Frank tenta igualar todos os regimes da Europa Ocidental ao “Bonapartismo”. Suas generalizações vão até mesmo mais longe: defende que existiram regimes Bonapartistas na França desde 1934 e que é impossível haver qualquer outro regime que não seja Bonapartista ou fascista até que o proletariado chegue ao poder na Europa. Isto, com sua licença, em nome da “continuidade de nossa análise política por mais de dez anos da história francesa”! Esta serenidade reduz a teoria a abstrações amorfas e dissimula erros inevitáveis e episódicos, convertendo-os deste modo em um sistema. Este método não pertence à IV Internacional.

O camarada Frank mistura indiscriminadamente o termo democracia burguesa com Bonapartismo, sem explicar as características específicas de cada um. Fala, alternadamente, de “Bonapartismo”, “elementos de Bonapartismo” e compara as liberdades democráticas com “um regime que se pode definir corretamente como democrático”. O leitor tem de procurar em vão por uma definição de seu “regime democrático” ideal que se diferencie da democracia burguesa real. Ele nega a existência de regimes democráticos na Europa atualmente porque “literalmente não há nenhum espaço para eles”.

Bases Econômicas e Superestrutura Política

Repetiremos aqui algumas idéias básicas do Marxismo com o objetivo de alcançar a claridade necessária e compreender os processos cambiantes e as mudanças que ocorrem atualmente nos regimes europeus – pelo menos na Europa Ocidental. A metade Oriental, dominada diretamente pela burocracia estalinista, desenvolve-se numa direção diferente e sob diferentes condições.

O caráter político de um regime (Bonapartista, fascista, democrático) é determinado basicamente pelas relações entre as classes na nação, e varia em épocas diferentes. Sua natureza fundamental é determinada, em última análise, por seu modo de produção e pelas relações de propriedade, por seu caráter de classe. Portanto, os regimes de Hitler[1] e Roosevelt, de Attlee e Mussolini, de Franco e Gouin, de Perón e Salazar, de De Valera e Chiang Kai Shek são todos governos da classe capitalista, por descansarem sobre a economia de exploração capitalista. Contudo, a natureza de classe desses regimes não esgota o problema. Temos de classificar o instrumento – que difere em cada caso – por meio do qual a burguesia assegura seu domínio e governo. O caráter desse governo decide-se não somente pelos desejos subjetivos e as necessidades dos capitalistas financeiros, que são somente um fator no processo, mas também e definitivamente pelas inter-relações objetivo-subjetivas entre as classes em dada época, que por sua vez estão determinadas pela história anterior e pelo desenvolvimento da luta de classes de um país concreto.

É uma vulgarização do Marxismo – materialismo vulgar do pior tipo – defender que a superestrutura de uma sociedade é determinada imediatamente pelo desenvolvimento de sua economia.

O desaparecimento das bases econômicas sobre as quais a “democracia” dos imperialistas está baseada, não conduz imediatamente ao desaparecimento da democracia burguesa. Apenas prepara o seu colapso no longo prazo. Para sermos exatos, o desenvolvimento do capitalismo em imperialismo no início do século XX já se adequou à existência de uma antiquada democracia burguesa. Vemos que a democracia burguesa conseguiu manter-se durante décadas após o desaparecimento de sua base econômica.

Que o capitalismo sobreviveu a suas funções históricas já foi testemunhado pela Primeira Guerra Mundial. Mas esta, por si mesma, não levou à derrubada do sistema capitalista. A Primeira Guerra Mundial criou as condições favoráveis à derrubada da burguesia em escala mundial. Mas o proletariado não pôde cumprir sua missão devido ao papel desempenhado pelas organizações por ele criadas. A social-democracia traiu a revolução e salvou o sistema capitalista da destruição. Na época revolucionária que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, a burguesia foi compelida a confiar no apoio da social-democracia, o único que dispunha para manter o seu domínio. Onde a burguesia se apoiou em regimes baseados na social-democracia, combinando a repressão contra os trabalhadores revolucionários com reformas e semi-reformas, estes somente podem ser caracterizados como regimes de “democracia burguesa”. Portanto, Lênin e Trotsky caracterizaram o regime contra-revolucionário na Alemanha em 1918, que foi organizado pela social-democracia, como um regime democrático-burguês.

É indiscutível que as liberdades democráticas foram obtidas na luta contra a burguesia durante um período de um século; o direito ao voto foi arrebatado à burguesia no período de ascensão do capitalismo, no momento de florescimento da democracia burguesa. Mesmo em seu apogeu nunca existiu um estado democrático idílico sem intervenções policiais e sem o uso da força bruta. Inclusive nesta etapa em que o capitalismo ainda era um sistema econômico ascendente, não havia somente regimes democráticos, também existiam regimes Bonapartistas. Na terra clássica do Bonapartismo, tanto Luís Napoleão[2] quanto o próprio Bonaparte chegaram ao poder no momento em que havia um autêntico boom que se prolongou, em algum caso, por duas décadas. De acordo com as concepções do camarada Frank, nesta época de ascensão das forças produtivas não haveria nenhuma base para o Bonapartismo; estas somente existiriam para a democracia burguesa. Mas vimos que o problema não é tão simples assim.

Depois de Luís Napoleão, a democracia burguesa (com uma ou duas ameaças de ditadura) se prolongou por décadas na França. De acordo com as misteriosas concepções de Frank, depois do Bonapartismo – o que significa que as bases econômicas para a democracia já não existem – não é mais possível para a burguesia manter-se com a democracia e sim... somente com Bonapartismo.

É difícil compreender porque o camarada Frank se detém em 1934 para rastrear regimes Bonapartistas na França. Se seguirmos seu método, logicamente teríamos Bonapartismo desde o golpe de estado de Luís Napoleão em 1851, ou talvez desde o primeiro Bonaparte!

Se existe um grão de sentido em sua posição de que desapareceram as bases econômicas para as reformas, tudo o que demonstra não é que automática e conseqüentemente possa ocorrer um regime Bonapartista, mas que o regime democrático sob tais condições será de caráter extremamente instável, afligido por convulsões e crises, que devem abrir caminho ou para a ditadura do proletariado ou para a ditadura aberta do capital financeiro através do Bonapartismo ou do fascismo.

O camarada Frank diz que a existência de liberdades democráticas não é suficiente para se ter um regime democrático. Uma observação profunda! E depois? A existência de medidas Bonapartistas não torna um regime Bonapartista, camarada Frank! Este argumento é tão profundo como aquele do “coletivismo burocrático” que sustenta que na Alemanha sob Hitler tínhamos uma intervenção do estado na economia, da mesma forma que na França sob Blum, na América sob Roosevelt (Lei de Recuperação da Indústria Nacional), na Rússia sob Stalin... Conseqüentemente todos esses regimes são a mesma coisa! Não são somente os pontos de similaridade – todas as sociedades humanas têm pontos de similaridade, em particular os diferentes tipos de sociedades capitalistas – o que determina nossa definição dos regimes são os traços decisivos.

Contra-revolução com forma democrática

O Partido Comunista Revolucionário britânico caracterizou os regimes na Europa Ocidental (França, Bélgica, Holanda, Itália) como regimes de contra-revolução com forma democrática. O camarada Pierre Frank pretende que a idéia de “contra-revolução democrática” é “destituída de todo conteúdo”. Então, ser-lhe-ia difícil explicar o que era a República de Weimar[3] organizada pela social-democracia na Alemanha. Estaria obrigado a defender que em 1918 na Alemanha não foi a revolução proletária que foi traída pela “contra-revolução com forma democrática” (depois da sangrenta repressão das insurreições de janeiro de 1919), e sim que foi uma revolução democrática que derrubou o Kaiser e substituiu o seu regime por uma democracia burguesa “pura”. O fato de que este regime foi introduzido por lei marcial e pela conspiração da liderança social-democrática com o Estado-maior da Reichswehr, os Junkers e a burguesia, confirma inteiramente a conclusão de Lênin e Trotsky de que houve uma contra-revolução “democrática”, com a burguesia usando os social-democratas como seus agentes.

Trotsky antecipou este desenvolvimento e se preparou teoricamente para uma situação similar com o colapso do fascismo na Itália, quando ele escreveu numa carta aos camaradas italianos em 1930:

“A partir do anterior, surge o problema do período ‘transicional’ na Itália. Em primeiro lugar é necessário estabelecer com muita clareza: transição de que para quê? Um período de transição da revolução burguesa (ou ‘popular’) à revolução proletária é uma coisa. Um período de transição de uma ditadura fascista à ditadura proletária é outra. Se se contempla a primeira concepção, coloca-se em primeiro lugar a questão da revolução burguesa e somente se trata de determinar o papel do proletariado nela. Somente depois será colocada a questão do período transicional à revolução proletária. Se se contempla a segunda concepção, então se coloca a questão de uma série de batalhas, distúrbios, situações cambiantes, viragens abruptas, que em seu conjunto constituem as diferentes etapas da revolução proletária. Estas etapas podem ser numerosas. Mas em nenhum caso podem conter dentro delas uma revolução burguesa ou este seu misterioso híbrido: a revolução ‘popular’.

“Significa isto que a Itália não pode por certo tempo tornar-se novamente um estado parlamentar ou uma ‘república democrática’? Considero – e creio que nisto coincidimos perfeitamente – que esta eventualidade não se exclui. Mas não será o fruto de uma revolução burguesa, e sim o aborto de uma revolução proletária insuficientemente madura e prematura. No caso de uma profunda crise revolucionária e de batalhas de massas, no curso das quais a vanguarda do proletariado não estiver em posição de tomar o poder, é possível que a burguesia restaure o seu poder sobre bases ‘democráticas’.

“Pode-se dizer, por exemplo, que a atual República alemã representa uma conquista da revolução burguesa? Admitir isto seria um absurdo. Houve na Alemanha em 1918-19 uma revolução proletária que, desprovida de direção, foi enganada, traída e esmagada. Mas a contra-revolução burguesa, apesar disto, viu-se compelida a se adaptar às circunstâncias provocadas por esta derrota da revolução proletária e a assumir a forma de uma república parlamentar ‘democrática’. Pode-se excluir a mesma variante – ou uma parecida – na Itália? Não, não se pode excluir. O fascismo chegou ao poder em 1920 porque a revolução proletária não foi até o fim. Somente uma nova revolução proletária pode aniquilar o fascismo. Se desta vez também não está destinada a triunfar (por debilidade do Partido Comunista, por manobras e traições dos social-democratas, franco-mações, católicos), o estado ‘transicional’ que a burguesia se verá obrigada edificar sobre as ruínas de sua forma fascista de governo não poderá ser outra coisa que um estado parlamentar e democrático” (Problems of the Italian Revolution, 14 de maio de 1930).

Os acontecimentos na Itália demonstraram a extraordinária capacidade de previsão de Trotsky. A burguesia foi obrigada a descartar o rei[4] e os traidores estalinistas e socialistas desviaram o desenvolvimento da revolução proletária para os canais de um “estado parlamentar e democrático”. Com isto, naturalmente, não lograrão uma base estável e estarão sujeitos a crises e agitações, movimentos da parte do proletariado e contra-movimentos de monarquistas e fascistas. Negaria Frank, agora, a correção das concepções de Trotsky e afirmaria que desde a queda de Mussolini tivemos um estado Bonapartista?

É incompreensível que Frank, em sua argumentação, refira-se a este artigo de Trotsky que põe em evidência precisamente o ponto de vista oposto. Depois do fascismo, o quê?, pergunta o Velho e responde que, como um meio de prevenir a revolução frente a uma insurreição das massas, a burguesia girará na direção do estabelecimento de uma república burguesa democrática. Com relação a isto, registremos que a introdução imediata do Bonapartismo (por supostas razões de que a democracia não tem base econômica) não foi sequer considerada por Trotsky.   

Disto pode-se desprender que realmente “vazia de conteúdo” é a concepção mecânica de que a contra-revolução apenas pode se manifestar na forma de fascismo ou Bonapartismo, isto é, de ditaduras policial-militares.

A experiência histórica demonstrou, e os acontecimentos que agora estão se desenvolvendo na Europa o demonstram irrefutavelmente, que os métodos da burguesia na sua luta contra a revolução proletária variam amplamente e não são determinados a priori. A burguesia utiliza-se de diferentes métodos, apóia-se em diferentes camadas sociais, dependendo da correlação de forças de classe, com o objetivo de reforçar ou restabelecer o seu domínio.

Poder manobrar com os estalinistas ou manipular suas agências social-democratas, Bonapartistas ou fascistas, ou, como acontece algumas vezes, usar todas as forças simultaneamente, não depende somente das intenções subjetivas da classe dominante, ou deste ou daquele aventureiro, mas das condições objetivas e das inter-relações entre todas as classes da nação – burguesia, pequena burguesia e proletariado – em um momento determinado. Repetir mecanicamente a conclusão de que a existência do capital financeiro é incompatível com a democracia burguesa no período contemporâneo (o que é indubitavelmente correto dentro de certos limites), e deste modo afirmar que todos os regimes devem ser Bonapartistas, é substituir a análise dialética dos acontecimentos por categorias abstratas formuladas sobre a base de uma experiência histórica parcial e insuficiente, ou uma visão estreita e incompleta do processo histórico como um todo.

Para compreender a natureza dos regimes da Europa Ocidental atualmente, devemos conhecer os antecedentes que os precederam. O movimento revolucionário das massas que se seguiu à Primeira Guerra Mundial foi paralizado e traído pelos social-democratas, que somente foram capazes de salvar o capitalismo da destruição sob a bandeira da democracia burguesa. A burguesia foi obrigada a confiar em suas agências social-democratas para simplesmente sobreviver.

O fracasso do proletariado em tomar o poder somente poderia levar a uma nova degeneração e decadência do capitalismo. A ruína da pequena burguesia, que não encontrou saída nas organizações de massa do proletariado, levou-a a se converter em instrumento da reação fascista. Imobilizada pela crise intolerável de seu sistema em um país após o outro, através de muitas transições, a burguesia se voltou para uma ditadura aberta e desenfreada.

A maré revolucionária foi seguida por uma maré contra-revolucionária. Na Itália, Alemanha e outros países, a burguesia utilizou as forças da pequena burguesia enlouquecida para destruir as organizações do proletariado. No final, tiveram que se voltar para a pequena burguesia e basear-se em regimes Bonapartistas, isto é, regimes que descansam diretamente no apoio do aparato policial-militar em lugar de regimes com uma base de massas.

Isto não resolveria as contradições do sistema capitalista em escala nacional ou internacional, mas inevitavelmente levaria à Segunda Guerra Mundial, num frenético empenho da burguesia para encontrar uma saída através da repartição do mundo. Mas a Segunda Guerra Mundial, até mesmo mais que a Primeira, pôs em cheque toda a existência do capitalismo como sistema. A burguesia se deu conta, com pavor, que ao desencadear a guerra desataria uma tremenda energia revolucionária do seio mais profundo das massas e recriaria as condições favoráveis à derrubada do capitalismo em escala continental.

As vitórias dos nazistas e a conquista de praticamente a totalidade do continente europeu tiveram como subproduto o efeito de destruir temporariamente a base de massas da reação por toda a Europa. A Reação e o sistema capitalista apoiaram-se diretamente sobre as baionetas dos exércitos nazi-fascistas. Os odiados Quislings desempenharam um papel puramente auxiliar. Com as vitórias do Exército Vermelho e o colapso de Hitler e Mussolini, o problema da revolução socialista se colocou na ordem do dia por toda a Europa. A Reação estava sem uma forte base na população e sem um forte e estável aparato policial-militar. Os exércitos aliados não podiam ser um apoio estável para a Reação e para uma ditadura militar aberta durante muito tempo. Na maioria dos países europeus a burguesia enfrentava insurreições de massas, que não podiam deter com suas próprias forças.

A Grécia foi a exceção. Somente depois de uma guerra civil e de uma sangrenta guerra de intervenção foi possível instalar um regime semi-Bonapartista ou Bonapartista, que pouco a pouco tentou impor um regime totalitário naquele país. Os imperialistas estão cientes da impossibilidade de utilizar tais métodos em escala continental. Adicionalmente, na Grécia o poder da reação tinha de se manter a todo custo por medo de que este último posto avançado do imperialismo britânico na península balcânica, junto ao restante dos Bálcans, caísse sob o domínio da burocracia estalinista. Mas até mesmo aqui não foi possível destruir completamente as organizações de massas do proletariado.

Nada salvou o sistema capitalista na Europa Ocidental exceto a traição da social-democracia e do estalinismo. Quando a burguesia se apóia em suas agências social-democrata e estalinista com propósitos contra-revolucionários, qual é o conteúdo dessa contra-revolução? Bonapartista, fascista, autoritária? É claro que não! Seu conteúdo é o de uma “contra-revolução com forma democrática”.

Naturalmente, a burguesia não pode manter-se por muito tempo sobre a base de uma contra-revolução democrática. Onde a revolução é detida pelos lacaios da burguesia, as forças de classe não ficam suspensas no ar. Depois de um período, que pode ser mais ou menos prolongado de acordo com os acontecimentos políticos e econômicos internacionais e dentro de um país determinado, a burguesia vira-se para a contra-revolução Bonapartista ou fascista.

Foi assim como se manifestaram os acontecimentos na Itália nos dois anos de refluxo da maré revolucionária provocada pela Primeira Guerra Mundial e na Alemanha durante um período de 15 anos. A mudança nas relações de classe refletiu-se na mudança dos regimes através de democracia, Bonapartismo preventivo, fascismo, ditadura militar Bonapartista pura.

A despeito da posterior degeneração da base econômica e política do capitalismo, o fracasso dos trabalhadores uma vez mais na hora de tomar o poder, destruir as relações capitalistas e organizar a sociedade sob nova forma, teve como resultado o estabelecimento de governos de democracia burguesa na Itália, na França e em outros países, baseados na manipulação dos estalinistas e social-democratas.  Defender que a contra-revolução ou o domínio da burguesia no presente período apenas se pode manifestar através do Bonapartismo, do fascismo ou de um governo do tipo de Franco, é abandonar a análise marxista dos processos na sociedade moderna. Levando em conta os muitos fatores envolvidos na história do período, inclusive a fragilidade da corrente Marxista, foi possível prever, e se o fez antecipadamente, como se desenvolveriam os acontecimentos na Europa Ocidental. Mas o processo somente se pode entender se for levada em consideração a natureza real de democracia, Bonapartismo, fascismo e não simplesmente as suas formas externas.

Diferentes regimes na sociedade capitalista

O Bonapartismo clássico do primeiro Napoleão surge da revolução democrática burguesa no período de juventude e vigor do capitalismo. Bonapartismo, o domínio da espada sobre a sociedade, representava uma situação em que o estado assumia uma relativa independência das classes, equilibrando-se entre classes hostis e servindo de árbitro entre elas. Continuava, entretanto, sendo um instrumento, acima de tudo, dos grandes capitalistas. Napoleão, ao se basear no apoio dos camponeses, pôde se manter por todo um período histórico, devido ao desenvolvimento das forças produtivas na França durante esse período.

Foi assim com Napoleão, o Pequeno, que estabeleceu o seu poder na França no golpe de estado de 1851. Marx, em seu Dezoito Brumário, descreveu a situação da seguinte forma: “o estado retrocedeu a sua forma mais primitiva, onde prevalece o domínio impiedoso da espada e do governo tirânico [dificilmente um espelho do regime de De Gaulle na França depois da libertação!]. Deste modo, o coup-de-tête de dezembro de 1851 é a resposta ao coup-de-main de fevereiro de 1848”.

Esta é a essência do Bonapartismo: uma ditadura policial-militar nua, o arbítrio pela espada. Trata-se de um regime que sinaliza que os antagonismos dentro da sociedade tornaram-se tão grandes que a máquina do estado – ao “regular” e “ordenar” esses antagonismos, enquanto permanece como um instrumento dos donos da propriedade –, assume certa independência com relação a todas as classes. Um “juiz supremo nacional” que concentra poder em suas mãos, que “arbitra” os conflitos dentro da nação, enfrentando uma classe contra a outra, mas permanecendo como um instrumento dos donos da propriedade. Ao mesmo tempo, caracterizamos como Bonapartista um regime em que as forças básicas de classe da burguesia e do proletariado encontram-se mais ou menos equilibradas entre si, o que permite ao poder estatal manobrar e equilibrar-se entre os campos em contenda e novamente dar ao poder estatal certa independência em relação à sociedade como um todo.

Contudo, há uma grande diferença entre o papel do Bonapartismo no período da fase ascendente do capitalismo e o seu papel no período de seu declínio. Daremos duas citações de Trotsky para explicar esta diferença com o máximo de clareza. Em Alemanha, o Único Caminho, podemos ler o seguinte:

“Em seu tempo, caracterizamos o governo de Brünning[5] como Bonapartismo (‘uma caricatura de Bonapartismo’), isto é, como um regime de ditadura policial-militar. No momento em que a luta de dois estratos sociais – possuidores e não-possuidores; exploradores e explorados – alcança sua máxima tensão, as condições estão dadas para o domínio da burocracia, da polícia, da soldadesca. O governo torna-se ‘independente’ da sociedade. Recordemos mais uma vez: se dois garfos são cravados simetricamente numa rolha de cortiça, esta pode manter o equilíbrio mesmo na cabeça de um alfinete. É este precisamente o esquema do Bonapartismo. Podemos estar seguros de que esse governo não deixa de ser o empregado dos proprietários. Contudo, o empregado sobe nas costas do patrão, esfrega o seu pescoço até deixar em carne viva e, às vezes, não hesita em limpar as botas em sua cara.

“Poder-se-ia assumir que Brünning perduraria até a solução final. Contudo, no curso dos acontecimentos, outro elo foi intercalado: o governo Papen. Para sermos exatos, deveríamos fazer uma retificação de nossa velha caracterização: o governo Brünning foi um governo pré-Bonapartista. Brünning foi somente um precursor. Numa forma perfeita, o Bonapartismo chegou à cena no governo Papen-Schleicher (setembro de 1932)”.

E continua:

“Contudo, a despeito da aparência de forças concentradas, o governo Papen em si é mais débil que seu predecessor. O regime Bonapartista pode alcançar um caráter relativamente estável e durável somente no caso de que ponha fim a uma época revolucionária; quando a relação de forças já tenha sido posta à prova em batalhas; quando as classes revolucionárias já estão exaustas; enquanto as classes possuidoras ainda não se libertaram do medo (não trará o amanhã novas convulsões?). Sem estas condições básicas, isto é, sem um esgotamento anterior das energias das massas em batalhas, o regime Bonapartista não está em posição de desdobrar-se”.

O Bonapartismo da fase de ascensão do capitalismo, erguendo-se sobre a sociedade, suprimindo e “arbitrando” os conflitos desatados dentro dela e regulando os antagonismos de classe, é forte e confiante. Sob as condições de um poderoso desenvolvimento das forças produtivas, alcança certa estabilidade. Mas o Bonapartismo da fase de declínio do capitalismo também está infectado pela senilidade. Afetado pela crise da sociedade capitalista, não pode resolver nenhum dos problemas a que enfrenta. A principal crise da sociedade – o conflito entre as forças produtivas, a propriedade privada e o estado nacional –, tornou-se tão grande e os antagonismos de classe por ela causados, tão intensos, que só permitem a ascensão do Bonapartismo senil. Ao mesmo tempo, como conseqüência, é tão fraco e enfermiço, que toda sua estrutura é vacilante e provavelmente será derrubada durante as crises que enfrente. É esta fragilidade do Bonapartismo que leva a burguesia e a camarilha militar a entregar o poder ao fascismo e a desatar os ávidos bandos de pequenos burgueses enlouquecidos e do lumpenproletariado contra o proletariado e suas organizações de classe.

As diferentes categorias de regimes, ainda que de vital importância para a teoria e prática marxista, não são abstrações metafísicas que indiquem, entre elas, determinações rígidas, fixas e eternas.

Há tantos fatores envolvidos, que é necessário examinar cada regime concretamente antes de se definir categoricamente sua posição.

Só é necessário destacar que inclusive dentro de cada categoria esboçada, podem-se incluir diferentes regimes. A Inglaterra, com suas sobrevivências feudais (Câmara dos Lordes e Monarquia) e a bárbara opressão dos povos coloniais, é uma “democracia”. A República Federal da Suíça e a França, com suas leis baseadas no Código Napoleônico, os EUA, a República de Weimar e a Irlanda – a despeito de suas amplas diferenças, permanecem como “democracias”. Qual é, então, a característica dominante que coloca estes regimes na mesma categoria?

Apesar de suas diferentes histórias, que elucidam suas diferentes peculariedades nacionais, todos eles possuem certos traços específicos em comum. São estes os traços que são decisivos para determinar uma classificação marxista. Todos têm organizações de trabalhadores independentes: sindicatos, partidos, clubes etc., com direitos próprios. O direito à greve, à organização, o direito ao voto, à livre expressão, imprensa etc., e outros direitos conquistados com a luta de classes do proletariado no passado (aqui, devemos acrescentar que a perda deste ou daquele direito não seria decisivo, por si mesmo, em nossa análise de um regime. É a totalidade das relações que é o fator determinante). Num sentido, esses direitos representam a existência, dentro do capitalismo, de elementos de uma nova sociedade. Ou, como explicou Trotsky em Alemanha, E agora?, em resposta ao ultra-esquerdismo estalinista: sob o regime da burguesia já existe o embrião do domínio da classe trabalhadora na forma de organizações dos trabalhadores.

Onde existem e desempenham estas organizações um papel importante (na França e na Itália elas são mais fortes que nunca), a burguesia governa conectada aos seus dirigentes e camadas superiores. É útil anotar, como assinalou Lênin, que em determinada etapa a burguesia governou até mesmo através dos sovíetes, ou, mais exatamente, através da liderança menchevique dos sovíetes.

Também o fascismo tem suas peculiaridades. Os regimes de Franco, Mussolini, Hitler e Pilsudsky[6] estão todos compreendidos dentro desta definição geral. Contudo, existem amplas diferenças entre eles. O que fundamentalmente os identifica entre si é a sua vontade de destruir completamente todas as organizações da classe trabalhadora. Mas, mesmo aqui, podemos ver que, imediatamente depois da explosão da guerra, o fascismo polonês, mais fraco que o da Alemanha e Itália, não conseguiu destruir completamente as organizações dos trabalhadores e poderia ter sido derrubado ainda antes de quando realmente o foi.

O Bonapartismo também mostra semelhantes variedades. Napoleão, Luís Napoleão, Von Schleicher e Papen, Petain, os regimes fascistas que se converteram em Bonapartistas – todos foram regimes Bonapartistas. O que eles tinham em comum? A independência do estado, a concentração do poder “pessoal”, o fato de descansar direta e abertamente sobre o domínio da máquina estatal através do poder descarado do aparato policial-militar, o “governo da espada”. Quaisquer que sejam as diferenças entre estes regimes, por exemplo, a existência de organizações dos trabalhadores com direitos atenuados ou limitados em certos casos, todos eles têm características em comum. As peculiaridades específicas a cada caso estariam determinadas pela história do país, pelo desenvolvimento das contradições sociais que tornaram possível o surgimento do Bonapartismo etc.

Deste modo, o Bonapartismo débil e estéril de Petain e Von Schleicher, na época da decadência do capitalismo, assemelha-se a uma caricatura do vigoroso e poderoso regime estabelecido por Napoleão em sua época de ascensão. Na transformação da democracia ao fascismo, podem existir muitas fases transicionais. Deste modo, o caminho ao Bonapartismo é preparado pela divisão da nação em dois campos hostis – o da pequena burguesia fascista e o da classe trabalhadora organizada. Nominalmente, o poder estatal assume uma independência frente a ambos e o regime policial-militar estabelecido prepara o caminho para entregar o poder ao fascismo.

A burguesia prefere dominar através de meios democráticos. Contudo, sob o impacto da crise, ela utiliza as gangues fascistas como agência terrorista para combater o proletariado e poder aprovar medidas ditatoriais bonapartistas. Somente como último recurso, e de má vontade, entrega o poder aos fascistas, como aconteceu na Itália e na Alemanha. Dependendo de muitos fatores, inclusive da política do partido revolucionário do proletariado, os acontecimentos na Europa e em outros lugares podem se desenvolver em linhas algo diferente, permitindo à reação se estabilizar temporariamente.

Contudo, é importante notar que os regimes de Schleicher e Papen, de Petain e do general Sirovy na Checoslováquia depois de Munich, todos eles se desenvolveram diretamente (ainda que através de etapas intermediárias) a partir de regimes de democracia burguesa. Os regimes pré-Bonapartistas, ou mesmo Bonapartistas, de Doumerge[7], Laval e Flandin prepararam o caminho para a Frente Popular na França, a qual por seu turno pavimentou o caminho para um desenvolvimento em direção ao Bonapartismo. Chamar a Frente Popular sob Blum de “Bonapartista”, como o faz o camarada Frank na citação seguinte, apenas pode causar incomensurável confusão nas fileiras da IV Internacional:

“... Mas o Bonapartismo do capitalismo em decadência pode ocultar-se sob outras roupagens. Em certos casos, é bastante difícil reconhecer isto, por exemplo, no caso de governos de esquerda, mesmo os muito à esquerda, especialmente, os do tipo Frente Popular. Ali, o Bonapartismo está tão escandalosamente envernizado com o lustro democrático que muitos se permitem tomá-lo por isto (!)”.

Nestas palavras do camarada Frank está a chave da confusão na caracterização de regimes. É fácil cair em tais erros porque, da mesma forma que o embrião de uma nova forma de sociedade existe nas organizações dos trabalhadores, também a possibilidade de Bonapartismo está enraizada na estrutura da sociedade sob democracia burguesa. Dentro de cada estado estão refletidos os antagonismos que existem na sociedade, mesmo na mais livre sociedade democrática. Como Engels escreveu em seu livro A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado:

“O estado não é, por essa razão, nenhum poder imposto de fora à sociedade; tampouco é a ‘concretização da idéia moral’, nem a ‘imagem e realidade da razão’, como Hegel asseverava. Mais propriamente ele é o produto de um determinado grau de desenvolvimento da sociedade; ele é o reconhecimento de que esta sociedade se enredou numa irremediável contradição consigo mesma e que está dividida por irreconciliáveis antagonismos que não pode dissipar. Mas, para que estes antagonismos, estas classes com interesses econômicos em conflito, não se devorem a si mesmas e à sociedade numa luta estéril, torna-se necessário um poder aparentemente situado acima da sociedade, cujo propósito é o de moderar o conflito e mantê-lo nos limites da ‘ordem’; e este poder nascido da sociedade, mas instalado acima dela e de modo crescente separando-se dela, é o estado”.

Em última análise, todo estado se baseia na força nua. Os oficiais do exército, a camarilha de generais, a polícia e a burocracia civil, treinados e selecionados para servir aos interesses do capitalismo, proporcionam a base para que prosperem os complôs militares e as conspirações, em situações de crise e agitação social.

Pierre Frank confunde aqui o papel do estado com Bonapartismo. Uma democracia que não esteja baseada na força, que não tenha um aparato situado acima da sociedade, nunca existiu nem existirá. Mas isto não supõe por si mesmo a existência de Bonapartismo.

Cada estado está baseado em corpos armados de homens com seus apêndices na forma de prisões, tribunais etc., e, deste modo, mesmo sob o mais democrático regime, temos a ditadura oculta do capitalismo. Mas disto não se segue que todo regime repressivo seja necessariamente Bonapartista. Repressão e supressão dos direitos dos trabalhadores sob condições de “emergência” ocorrem em todos os regimes, inclusive o democrático, quando os interesses básicos do capital estão ameaçados e até que as condições “normais” sejam restauradas – isto é, até que as massas aceitem sem rebelar-se o jugo do capital. A burguesia mantém uma flexibilidade extrema, manipulando os regimes de acordo com a resistência das massas, as forças de classe, etc. Graças às traições dos dirigentes dos trabalhadores, a burguesia pode fazer isto.

Prognóstico à luz dos acontecimentos

Independentemente de seus desejos iniciais de impor regimes Bonapartistas na Europa, o imperialismo anglo-americano logo viu a impossibilidade disto (exceto na Grécia) nos riscos incalculáveis que isto poderia trazer e por isso optaram por regimes democráticos baseados no proletariado desarmado.

Os acontecimentos na França e na Europa Ocidental confirmaram a incorreção do método de Pierre Frank. Em todos os lugares da Europa Ocidental desde a “liberação”, a tendência tem sido a de um contínuo movimento em direção à democracia burguesa e não em direção a regimes cada vez mais ditatoriais; em direção ao crescimento dos direitos democráticos e não em direção a sua limitação. Na etapa final esta tendência será revertida, mas no presente o movimento na Europa Ocidental dirige-se a regimes de democracia burguesa. Deste modo, na Itália temos o estabelecimento da república democrática burguesa, sindicatos etc.; na França temos eleições, partidos, sindicatos etc.; na Bélgica e na Holanda temos eleições democráticas. A virada das massas em direção ao socialismo-comunismo reflete-se no fato de que estes partidos conseguiram uma maior percentagem dos votos que em qualquer outro momento na história. Para mobilizar a reação pequeno-burguesa em contraposição a eles, a burguesia, neste momento, não se baseia na reação fascista (que permanece em reserva), mas nos partidos católicos e cristãos apoiando-se na democracia parlamentar. Isto dá à burguesia uma margem de manobra para preparar, numa etapa final e nas condições favoráveis necessárias, uma transição através de regimes Bonapartistas à ditadura totalitária.

Está claro que a situação atual é inteiramente diferente da situação na Alemanha e Itália antes da vitória do fascismo, quando os partidos de massas do fascismo estavam organizados e a possibilidade de manobra do estado entre dois campos mortalmente hostis estava colocada por toda a situação. Longe disto, na Itália e na França os partidos da democracia cristã estão colaborando com as organizações dos trabalhadores numa típica coalizão de gabinete de democracia burguesa. A burguesia não pode agir de outra maneira devido ao perigo de distúrbios revolucionários por parte das massas.

A situação é semelhante àquela na Alemanha durante a república de Weimar. Para impedir a revolução, a burguesia organizou uma coalizão governamental da social-democracia e do Centro Católico[8].

Era isto Bonapartismo? Obviamente, não. Mas como resultado de sua política, a social-democracia foi punida com a virada dos pequenos burgueses para a reação e com a tentativa de se restabelecer uma monarquia Bonapartista com o golpe de estado de Kapp[9] em 1920. Como se sabe, esta tentativa de golpe Bonapartista foi derrotada pelas massas, quando os comunistas e os socialistas participaram de uma greve geral. A indignação dos trabalhadores, devido à propaganda correta do Partido Comunista advertindo sobre este perigo e formando uma frente única para esmagá-lo, levou os trabalhadores no Ruhr a tentar a tomada do poder. A reação em seguida aliou-se aos social-democratas para esmagar este movimento das massas. Isto, por seu lado, pavimentou o caminho para um regime instável de democracia burguesa.

A posição equivocada sobre a natureza dos regimes na Europa flui de uma perspectiva incorreta. Os camaradas americanos defendiam que somente ditaduras militares do tipo da de Franco eram possíveis na Europa depois da vitória dos aliados imperialistas. Pierre Frank aceita a posição equivocada do Secretariado Internacional (SI) em 1940:

“Se a Inglaterra instalasse amanhã De Gaulle na França, seu regime não se distinguiria no fundamental do governo Bonapartista de Petain”.

Existe uma pequena diferença, camarada Frank! Para os trabalhadores, uma diferença decisiva! É certo que a classe capitalista continuou a governar sob De Gaulle como o fez sob Petain. Mas defender em 1946 que os dois regimes poderiam não se diferençar é cair na estupidez sectária dos estalinistas na Alemanha no final dos anos 1920, os quais não distinguiam entre um regime capitalista baseado nas organizações dos trabalhadores e a abolição destas organizações pelo fascismo.

A confusão de Pierre Frank ficou mais uma vez exposta em sua triunfante declaração de que o regime de Petain era Bonapartista. Trotsky disse que o regime de Petain era Bonapartista. Mas Frank não compreende o que queria dizer Trotsky. Em seu período de decadência, os regimes de Hitler e Mussolini eram qualificados por Trotsky como regimes Bonapartistas. A única diferença entre estes regimes e o de Petain era que Petain nunca dispôs de uma base de massas na pequena burguesia, como Hitler e Mussolini. Neste sentido, o regime de Petain não poderia ser qualificado como fascista, e sim como Bonapartista. Por esta razão, seu regime era muito mais débil e poderia ser facilmente derrubado pelo movimento das massas. Petain baseava-se nas baionetas estrangeiras para governar. De outra maneira, não haveria diferenças entre os regimes de Franco, Mussolini e Hitler em suas fases de decadência e o de Petain.

O camarada Frank disse o seguinte:

“... nosso organismo internacional de mais responsabilidade prognosticou que uma simples substituição de camarilhas depois da vitória dos aliados não significaria uma mudança substancial na natureza do regime político. Encontramo-nos na presença de uma avaliação da escala histórica baseada sobre posições que foram defendidas durante muitos anos pela IV Internacional contra todas as outras teorias e etiquetas baratas espalhadas por outras tendências e formações do movimento operário. Se um erro verdadeiramente considerável fosse cometido, teríamos a obrigação urgente de buscar as razões dele e corrigi-lo. Quanto a nós, não acreditamos que nossa organização tenha errado neste ponto...”.

A declaração do SI feita em 1940, referida pelo camarada Frank, era incorreta. Nós cometemos o mesmo erro, se bem que sob circunstâncias perdoáveis. Mas repetir em 1946 o erro que já estava claro em 1943 é indesculpável. Uma resolução dos trotskistas britânicos, escrita em 1943, na qual nos corrigíamos, analisava a situação atual da Europa e dizia o seguinte:

“Na ausência de partidos trotskistas experimentados, com raízes e tradições no seio das massas, as primeiras fases das lutas revolucionárias na Europa serão provavelmente o resultado de um período de kerenskismo ou frentepopulismo. Isto já se pressagia nas lutas iniciais dos trabalhadores italianos e nas reiteradas traições da social-democracia e do estalinismo” (Resolução da Conferência Nacional da Liga Internacional dos Trabalhadores, outubro de 1943).

Os acontecimentos mostraram a correção desta análise. Em vez de enfrentar corajosamente um erro de perspectivas, Frank vai contra a realidade e tenta converter um erro em uma virtude.

Frank toma a França como a pedra fundamental de sua tese. Certamente deve estar lamentando isto agora. Porque é na França, acima de tudo, que o processo se espelha com mais clareza. A França é a chave da Europa e qualquer erro sobre a natureza do regime francês poderia resultar fatal para os jovens quadros do trotskismo.

Examinemos a situação. Pierre Frank visualiza o desenvolvimento como segue: Bonapartismo desde 1934, porque, vejam vocês, a burguesia não poderia oferecer uma democracia burguesa; Petain era Bonaparte; De Gaulle era Bonaparte; a Frente Popular (Blum!) era Bonapartista; de fato, como diriam os metafísicos: “à noite, todos os gatos são pardos”. A tese é que todos eram Bonaparte. Segue-se que Gouin é Bonaparte e o governo que se seguirá também será Bonapartista. Se esta demência contagiasse os franceses, nosso partido francês chegaria a uma situação lamentável. Felizmente, este risco aparentemente não existe.

Uma apreciação marxista seria algo diferente da oferecida por Pierre Frank. Qual foi o desenvolvimento do regime? De que e para que está evoluindo? Qual é a situação das classes? Quais são as relações entre as classes? Uma apreciação sóbria dos últimos dois anos diz-nos-á que (1) temos aqui uma revolução proletária inacabada; que levou (2) a uma instável democracia burguesa, com assembléia, eleições, eleitores, constituição democrático-burguesa; (3) colocação de um candidato Bonaparte. O poder real descansa nos principais partidos da classe trabalhadora. Um pretenso Hitler lutando pelo poder e um Hitler no poder são duas coisas distintas. Um pretenso Bonaparte, como De Gaulle, e um Bonaparte real exercendo o poder pessoal com a espada, são duas coisas distintas. De Gaulle ainda pode ser um Franco francês, mas ninguém pode declarar vitorioso o inimigo antes que tenha começado a batalha decisiva.

O Bonapartismo do período moderno, por sua própria natureza, deve ser um regime de transição – transição ao fascismo, transição à democracia ou, até mesmo, à revolução proletária. É um período de manobras entre as classes. Que existem elementos de Bonapartismo na situação da Europa, é ocioso dizer. Estes elementos podem se transformar em dominantes, mas apenas sob determinadas condições. Ao se declarar Bonapartista um regime, deve-se apresentar, em seguida, suas características específicas. A despeito da zelosa diligência de Pierre Frank em elevar De Gaulle à posição que somente ele aspira, o “Bonaparte” De Gaulle, medindo as relações de força, foi obrigado a se retirar tristemente do cenário para esperar momentos mais propícios.

Está precisamente aí o cerne da questão. É necessário responder à propaganda estalinista e socialista advertindo que suas políticas inevitavelmente trazem os riscos de contra-revolução e Bonapartismo; advertir sobre a ameaça de ditadura policial-militar que paira sobre o proletariado, se este não eliminar os ninhos Bonapartistas formados por quadros do Estado Maior, polícia e burocracia civil, e não tomar o poder em suas próprias mãos.

Camaradas, não se deve cometer o erro dos comunistas alemães que declararam continuadamente cada regime de fascista até o final; adormecendo e confundindo com isto a vanguarda, um Hitler real chegou. Naturalmente, se Pierre Frank continua a repetir isto por muito tempo, sem dúvida se tornará realidade. Coincindindo com sua definição, no final, teremos um regime Bonapartista na França e em outros países da Europa. Mas para os marxistas, este procedimento não é correto. Devemos analisar e explicar conscienciosamente cada mudança de governo. Assim, podemos preparar-nos para os futuros acontecimentos.

Era “Bonapartista” o regime de Kerensky?

De forma disseminada em todo o seu artigo, Frank refere-se ao “Bonapartismo a la Kerensky”, o Bonapartismo de Kerensky, desse modo assumindo que o Bonapartismo tinha sido de fato estabelecido com o regime de Kerensky – algo completamente injustificado se se tem um conhecimento do período.

Frank toma uma ou duas formulações condicionais de Lênin e Trotsky em relação ao regime de Kerensky na Rússia e tenta convertê-las em definitivas. Na realidade, os fatos o contradizem. Cabe notar que o capítulo da História da Revolução Russa ao qual ele se refere não se intitula “Bonapartismo”, mas Kerensky e Kornilov – Elementos de Bonapartismo na Revolução Russa. Trotsky sempre foi particularmente cuidadoso com as definições e, deste modo, quando ele diz “elementos”, não quer dizer a coisa em si mesma. E por boas razões. Não há dúvida de que Kerensky teria amado desempenhar o papel de Bonaparte. As possibilidades de Bonapartismo estavam enraizadas na situação. Mas o Bonapartismo nunca se completou porque o Partido Bolchevique era forte e conseguiu realizar a revolução proletária, não deixando margem de manobras para a tomada do controle por aventureiros. Muitas citações poderiam ser oferecidas para mostrar a natureza condicional da caracterização do regime de Kerensky como Bonapartista. No próprio capítulo citado pelo camarada Frank, do qual ele abstrai a única sentença caracterizando Kerensky como “o centro matemático do Bonapartismo russo”, Trotsky diz o seguinte:

“Os dois campos em luta imploravam o auxílio de Kerensky; cada um via nele parte de si mesmo, e ambos juravam-lhe fidelidade. Trotsky escrevia desde a prisão: ’dirigido por políticos que tinham medo da própria sombra, o sovíete não se atreveu a tomar o poder. O Partido Kadete, representando todos os tipos de proprietários, ainda não podia assumir o poder. Não restava outro recurso do que encontrar um grande conciliador, um mediador, uma corte de arbitragem’.

“Num manifesto ao povo emitido por Kerensky em seu próprio nome, ele declarou: ‘Eu, como chefe do governo... não me considero com direito a deter-me ante a circunstância de que as modificações [na estrutura do poder] aumentem minha responsabilidade no que se refere à direção suprema do país’. Esta é a fraseologia sem disfarces do Bonapartismo. E, contudo, apesar do apoio tanto da direita quanto da esquerda, as coisas não foram além da fraseologia’” (História da Revolução Russa, Editora Saga, Volume II, pág. 543. Ênfase nossa).  

Trotsky escreveu isto como historiador, avaliando sobriamente e pesando cada palavra. Se se estudam os trabalhos de Lênin conscienciosamente, inclusive os escritos no calor dos acontecimentos, a única coisa que se pode ver é a incorreção da posição de Frank ao confundir as bactérias com a enfermidade. Lênin escreve, por exemplo, em seu trabalho Rumo ao Poder: “O gabinete de Kerensky é sem dúvida o primeiro passo rumo ao Bonapartismo” (Collected Works, volume 25, p. 224).

Aqui se pode ver o caráter condicional com que falavam Lênin e Trotsky sobre o assunto. Em cada capítulo de O Estado e a Revolução citado por Frank, em que Lênin se refere ao governo de Kerensky como Bonapartista, o caráter condicional disto se observa em todos os parágrafos. Ao tratar a questão do estado e todas as suas formas como um instrumento para exploração da classe oprimida (assim se intitula o capítulo em que estas referências ao Bonapartismo ocorrem), Lênin diz o seguinte:

“Numa república democrática, continua Engels, ‘a riqueza exercita seu poder indiretamente, mas de forma ainda mais efetiva’, primeiro, através da ‘corrupção direta dos funcionários’ (América); segundo, através da ‘aliança do governo com a bolsa de valores’ (França e América).

“Na atualidade, o imperialismo e a dominação dos bancos ‘desenvolveram’, até converter numa refinada arte, estes dois métodos de defender e levar à prática a onipotência da riqueza nas repúblicas democráticas – sejam elas quais forem. Se, por exemplo, nos primeiros meses da república democrática russa, durante o que poderíamos chamar de lua de mel dos ‘socialistas’ – social-revolucionários e mencheviques – com a burguesia, o senhor Palchinski sabotou todas as medidas de restrição contra os capitalistas e seus latrocínios, contra seus atos de pilhagem do fisco através dos abastecimentos de guerra, e se, em seguida, o senhor Palchinski, uma vez fora do ministério (substituído, naturalmente, por outro Palchinski exatamente igual) foi ‘recompensado’ pelos capitalistas com uma sinecura de 120 mil rublos de soldo ao ano, o que isto significa? É um suborno direto ou indireto? É uma aliança do governo com os consórcios ou são ‘somente’ laços de amizade? Que papel desempenham os Chernov e os Tseretelli, os Avxéntiev e os Skóbelev? É o de aliados ‘diretos’ ou somente indiretos dos milionários malversadores dos fundos públicos?” (Collected Works, volume 25, p. 397).

Para concluir, no último capítulo do mesmo livro, Lênin se ocupa da questão do parlamentarismo, opondo o sovíete à democracia burguesa:

“’Uma corporação do trabalho, não uma corporação parlamentar’. Este tiro vai direto ao coração dos parlamentares modernos e dos parlamentares da social-democracia, seus ‘cachorrinhos de estimação’! Tomem qualquer país parlamentar, da América à Suiça, da França à Inglaterra, Noruega etc., - a verdadeira tarefa do ‘estado’ executa-se entre bastidores e a executam os ministérios, os escritórios, os Estados Maiores. Nos parlamentos não se faz mais que palrear, com a finalidade especial de enganar as ‘pessoas comuns’. Isto é tanto verdade que, mesmo na república russa, uma república democrática burguesa, logo se manifestaram todos estes pecados do parlamentarismo, antes mesmo de se ter conseguido criar um parlamento real...” (Collected Works, volume 25, p. 428. Ênfase nossa).

Teríamos de reduzir Lênin a um amontoado de contradições estúpidas se fôssemos utilizar o método de Pierre Frank. Para Frank não existe uma contradição real entre democracia burguesa e Bonapartismo, de tal forma que, na França, teríamos tanto uma democracia burguesa quanto Bonapartismo. Desta maneira, sua objeção ao termo “regime democrático burguês” converte-se em algo inteiramente incompreensível.

Frank assinala o fato de que os camaradas britânicos tenham se referido ao governo trabalhista na Grã-Bretanha como um regime tipo Kerensky para afirmar que esta formulação é incorreta porque não temos um regime Bonapartista neste país:

“Já que falamos aqui da resolução de nossos camaradas britânicos, devemos observar que ela define o novo governo trabalhista como ‘kerenkismo’. O Bonapartismo, que eles ignoraram, encontrou meios de se insinuar em seu documento sob um nome especial. Mas não pensamos o presente governo Attlee como Bonapartista à la Kerensky”.

Este exemplo serve para demonstrar que Frank não entendeu o significado do governo Kerensky ou do Bonapartismo. O governo Kerensky é o último ou “o penúltimo” governo de esquerda antes da revolução proletária, ou, em caso de fracasso desta, da contra-revolução burguesa. Sob dadas condições, as tensões sociais e os agudos conflitos de classes nesse período tenderiam a provocar conspirações e complôs Bonapartistas. Foi isto precisamente o que aconteceu na revolução russa e ao que Lênin e Trotsky faziam referência quando falavam de tendências Bonapartistas dentro do regime de Kerensky. Contudo, em benefício do camarada Frank, isto não converte o regime de Kerensky em um regime Bonapartista. No que diz respeito ao que escrevemos, talvez tenhamos nos apressado a acrescentar, em relação ao governo trabalhista como um governo kerenskista, que, em absoluto, é uma avaliação acabada, mas uma analogia que utilizamos com as salvaguardas apropriadas e necessárias. Para deixar a questão fora de toda dúvida, citaremos nossa resolução:

“Na etapa final, o mais resoluto setor da burguesia começará a buscar uma solução numa ditadura, ou numa monarquia nas linhas de Primo de Rivera na Espanha, ou alguma solução similar. Os bandos monárquicos ou fascistas, sob o disfarce de associações ‘patrióticas’ ou de ex-militares começarão a se levantar.

“Os acontecimentos podem acelerar ou retardar os processos, mas o que é certo são as enormes pressões e ódios de classe. O período de reação triunfante chegou ao seu final, uma nova época revolucionária abre-se na Grã-Bretanha. Com muitos fluxos e refluxos, com velocidade maior ou menor, a revolução está começando. O governo trabalhista é um governo Kerensky. Isto não significa que o tempo dos acontecimentos seja o mesmo que o dos acontecimentos na Rússia depois de março de 1917, pelo contrário, a revolução provavelmente assumirá um caráter de longo prazo, mas proporcionará as bases para a construção de um partido revolucionário de massas”.

Afortunadamente, para colocar a situação em perspectiva adequada, Trotsky deu uma definição do kerenskismo (que ele não definia como Bonapartismo!) quando tratou das posições equivocadas do Comintern em relação à revolução espanhola de 1931:

“... Este exemplo mostra que o fascismo [poderíamos adicionar o Bonapartismo – TG] não é absolutamente o único meio da burguesia em sua luta contra as massas revolucionárias. O regime existente na Espanha atualmente [uma coalizão governamental dos burgueses republicanos e do partido socialista similar àquela da Itália e da França hoje – TG] corresponde melhor à concepção do kerenkismo, isto é, o último (ou o penúltimo) governo de esquerda que a burguesia pode instalar em sua luta contra a revolução. Mas este tipo de governo não significa necessariamente debilidade e prostração. Na ausência de um forte partido revolucionário do proletariado, a combinação de pseudo-reformas, fraseologia esquerdista, gesticulações ainda mais esquerdistas e medidas de repressão pode render à burguesia serviços mais efetivos que o fascismo” (Germany, the Key to the International Situation, novembro de 1931).

As obscuras noções de democracia e Bonapartismo de Frank podem ser vistas nas referências dispersas em todo o seu artigo. Apresentemos alguns exemplos:

“O uso de slogans democráticos combinados com slogans transicionais se justifica precisamente porque não existem as possibilidades de um regime democrático...”

“Precisamente porque não podemos ter em geral na Europa, no momento atual, regimes democráticos, porque não há literalmente lugar para eles...”

“Não se deve confundir Bonapartismo ‘de direita’ com fascismo quanto, nem muito menos, Bonapartismo ‘de esquerda’ com democracia. Vimos que o Bonapartismo adquire as mais diferentes formas segundo as condições nas quais os dois campos mortalmente opostos se encontram; sustentamos também que a existência de liberdades democráticas, mesmo de grandes liberdades democráticas, não é suficiente para tornar democrático um regime. Os Bonapartistas à la Kerensky, as Frentes Populares... são inclusive famosos por sua torrente de liberdade democrática até o ponto em que a sociedade capitalista sofre riscos de desequilíbrio e se encontra em perigo de soçobrar. As liberdades democráticas não procedem, num regime que se pode definir corretamente como democrático, da existência de uma margem para a reforma dentro do capitalismo, mas, pelo contrário, de uma situação de crise aguda, o resultado da ausência de qualquer margem ou reformas”.

“... O regime da Frente Popular não era um regime democrático; continha dentro de si numerosos elementos de Bonapartismo, como veremos mais adiante”.

A concepção de democracia colocada pelo camarada Frank nunca existiu nem no céu nem na terra. Existe apenas nas normas idealistas do liberalismo. Sempre, a democracia, isto é, a democracia burguesa, foi construída nos marcos da repressão. Todas as constituições ou regimes burgueses contêm seu Artigo 48, como na Constituição de Weimar. A própria existência da sociedade de classes pressupõe um regime de opressão. Mas somente quem abandonou a disciplina marxista de pensar e opera na base de categorias metafísicas pode igualar democracia com o Bonapartismo ou com o fascismo. Ainda que existam muitos pontos de similaridade entre estes regimes, e elementos de governo militar escancarado em todos os regimes em um grau ou outro, a quantidade se converte em qualidade. O que dita a natureza do regime não é este ou aquele elemento, mas suas características básicas. A democracia hoje pode se tornar Bonapartismo amanhã e se transformar em fascismo no dia seguinte. O fascismo, como vimos, pode se transformar em democracia e repetir o processo.

O método marxista não é o de agrupar todos os regimes de forma indiscriminada. Esta é a forma fácil, mas que leva a erros graves e confusões. O método marxista é o de examinar as coisas em seu processo de mudança e evolução. Examinar cada governo por sua vez, estabelecer suas características específicas e suas tendências. Preparar-se para mudanças abruptas e transições, que é a característica básica de nossa época, e, desse modo, retificar e delimitar, se for necessário, nossas caracterizações em cada etapa sucessiva. As penosas limitações do método de Pierre Frank (que ele etiqueta de marxismo, mas que na realidade é impressionismo) resumem-se em suas próprias palavras:

“O termo ‘Bonapartismo’ não esgota completamente a caracterização do regime, mas é indispensável a sua utilização na situação atual da Europa, se se deseja avançar com a menor possibilidade de erro. Devemos acrescentar, finalmente, que o marxismo não significa somente ter a posse de idéias gerais importantes: todas as ciências fazem o mesmo. Desse modo, os químicos denominam de carburetos a substâncias que diferem amplamente entre si, da mesma forma que diferem o Bonapartismo de Schleicher e o de Kerensky”.

Os estalinistas utilizaram o mesmo método durante o “terceiro período”, com lamentáveis resultados na Alemanha. Começando com uma correta generalização de que todos os partidos, da social-democracia ao fascismo, eram agentes da classe capitalista... acabaram por dizer que, por essa razão... não havia nenhuma diferença entre eles – que todos eram fascistas de diferentes variedades. Tanto para o químico quanto para o marxista, o problema começa onde, para Frank, termina. Um químico pode classificar certos corpos sob o título geral de carburetos. Mas um químico que se detivesse nessa definição, não iria muito longe! O carbureto silício e o carbureto cálcio entram na mesma categoria de “carburetos”, mas se se pretende fazer com o primeiro tipo de carbureto uma lâmpada de acetileno para uma bicicleta, seriam obtidos resultados muito ruins. Não seria possível iluminar o caminho. Da mesma forma, o método de Frank não pode lançar luz sobre a natureza dos regimes na Europa.

Notas

[1] Líderes governamentais na Alemanha, América, Grã-Bretanha, Itália, França, Argentina, Portugal, Irlanda e China no período de 1943-46, que dirigiram vários tipos de regimes que iam do fascismo à social-democracia, mas todos baseados no capitalismo.

[2] Napoleão Bonaparte (Napoleão I) chegou ao poder através de um golpe de estado em 18 Brumário (9-10 de novembro de 1799) e se proclamou imperador em 1804. Luís Bonaparte (Napoleão III) venceu a eleição presidencial em 1848. Através de um golpe de estado, dissolveu a assembléia legislativa e se declarou imperador em 1852.

[3] Weimar foi a cidade da Alemanha onde a nova constituição foi formulada em 1919. A Reichswehr era o exército regular da Alemanha de Weimar. Para um relato completo da revolução de 1918 e do levante espartaquista de janeiro de 1919, ver Germany – From Revolution To Counter-Revolution de Rob Sewell (Fortress).

[4] Quando os aliados liberaram Roma em maio de 1944, bloquearam qualquer tentativa, ao contrário do que tinham previamente acordado, de retorno do rei Victor Emanuel ao trono por medo de provocar uma nova rebelião dos trabalhadores.

[5] Heinrich Brüning foi o chanceler alemão de 1930-32. No final de 1931, anulou virtualmente todos os acordos sindicais e restringiu a liberdade de imprensa. Kurt Von Schleicher, um general da Reichswehr, sucedeu Von Papen como chanceler em dezembro de 1932. Foi subsituído por Hitler dois meses depois.

[6] Josef Pilsudsky liderou um golpe na Polônia em 1926 e se tornou ditador até sua morte em 1935.

[7] Gaston Doumergue, antigo presidente da França, tornou-se primeiro-ministro depois da tentativa de golpe de seis de fevereiro de 1934, prometendo um governo “forte”. Pierre Laval, primeiro-ministro francês de 1935-36, e primeiro-ministro do regime colaboracionista de Vichy, em 1942. Pierre Viandin sucedeu Doumergue como primeiro-ministro em 1934-35.

[8] O partido do Centro Católico era o partido democrático cristão da Alemanha.

[9] Para uma descrição mais detalhada do golpe de Kapp, ver Germany - From Revolution to Counter-Revolution de Rob Sewell (Fortress).